Qual é o seu livro predileto sobre o Flamengo?
Nos meus Dez Mais, está certamente “Um Flamengo grande, um Brasil maior”, do historiador Renato Soares Coutinho, lançado em 2014 pela editora 7 Letras.
É um livraço, como diria o jornalista Elio Gaspari. Não pelo tamanho, já que não chega a 200 páginas, calmamente navegáveis. O mérito do craque Coutinho está em aproveitar com competência a bola que vinha quicando desde 2002, quando Ruy Castro levantou esta lebre, no seu obrigatório “O vermelho e o negro”:
“Um dia, quando se mergulhar de verdade nos fatores que, historicamente, ajudaram a consolidar a integração nacional, o Flamengo terá de ser incluído. Durante todo o século XX, ele uniu gerações, raças e sotaques em torno de sua bandeira. Ao inspirar um rubro-negro do Guaporé a reagir como um rubro-negro do Leblon (com os mesmo gestos e expletivos, e no mesmo instante), o Flamengo ajudou a fazer do Brasil uma nação”.
Pois o professor e doutor em História mandou a pelota certinha na gaveta, ou na prateleira. A partir da releitura minuciosa do “Jornal dos Sports” (1931–2010), ele percebe como a massificação do Flamengo, tanto no Rio de Janeiro, então capital federal, como em todo território nacional, teve pouco ou nada a ver com títulos conquistados, e sim com a imagem de “time do povo” que o clube soube abraçar num momento em que o Brasil de Getúlio Vargas buscava se modernizar, nos anos 1930.
Flamengo usou marketing e até o samba para crescer
Muito graças a técnicas elementares de marketing do presidente José Bastos Padilha, avô do diretor de “Tropa de Elite”, e também graças a crônicas de Mário Filho, bem como do espírito de Gilberto Cardoso, o Flamengo virou símbolo, paixão e conforto para os trabalhadores e torcedores das classes mais baixas. O livro defende que partiram dessas três principais figuras as escolhas acertadas que fizeram do clube uma nação, numa época em que o futebol brasileiro começava a se profissionalizar e acompanhava os rumos políticos e culturais do país. E quem foi sagaz e fechou com o certo cresceu e ganhou os corações brasileiros, da Gávea ao Chuí.
Minha passagem predileta é quando são citados os principais intelectuais decisivos para que o Flamengo pulasse os muros do clube da zona sul e se deixasse amar pelo povão. O autor faz justiça ao compositor Wilson Batista, posicionado no mesmo patamar de um José Lins do Rego, um Ary Barroso ou um Nelson Rodrigues. São páginas para se ler cantarolando, em especial se você curte samba.
E há, claro, trechos para se ler em silêncio respeitoso. Como quando o Flamengo enfim anuncia a contratação do cracaço Leônidas da Silva – cedido pelo Botafogo sem empecilhos no dia 10 de julho de 1936. Como o livro explica, a presença do “Diamante Negro” causava desconforto entre sócios e dirigentes alvinegros. Chame de elitismo, preconceito, racismo, atraso ou amadorismo; no fundo, o nome verdadeiro disso é burrice, a inextinguível burrice humana, que jamais foi exclusiva daquela época e muito menos do Botafogo.
Como bom cientista que é, Renato também se arrisca. É o caso de sua tese de que o Flamengo precisou apagar sua história antes dos anos 1930 para ganhar a massa. O Flamengo teria se reinventado, rescrito sua história de 1895 a 1930 e forçado uma vocação natural para ser popular que jamais existira em seu passado de “clube fidalgo”. Longe de mim ver caroço em angu, mas uma agremiação onde remadores perambulavam pelados pela sede, entre outras libertinagens, era mesmo assim tão fidalga? Se o clube era frequentado pela elite, nada prova que suas cores não fossem vistas com simpatia por cariocas de todos os cantos. Pelo contrário, aliás.
Em 1917, João do Rio, notório autor de “A alma encantadora das ruas”, cronista do povão e dos vagabundos do Rio, decidiu testemunhar e relatar, no jornal “O Paiz”, o que era um jogo do Flamengo. E partiu com amigos para ver uma partida contra o Fluminense, que reuniu mais de 6 mil espectadores e onde “500 automóveis buzinavam, bufavam, sirenavam”. É João do Rio que indica, já em 1917, a tal vocação natural do clube que sempre deixou ser amado:
“E o Clube de Regatas do Flamengo foi o núcleo de onde irradiou a avassaladora paixão pelos esportes (…) O povo encheu-se de simpatia”. Mais adiante, arremata: “Tenho assistido a meetings colossais em diversos países, mergulhei no povo de diversos países, nessas grandes festas de saúde, de força e de ar. Mas absolutamente nunca eu vi o fogo, o entusiasmo, a ebriez da multidão assim. Só pensando em antigas leituras, só recordando o Coliseu de Roma e o Hipódromo de Bizâncio.” O placar? Mengão 4 a 1, como de hábito.
Recomendo fortemente a leitura. O Flamengo já foi, certa feita, apelidado de “o clube que não se explica”. O historiador Renato Soares Coutinho talvez tenha sido quem chegou mais perto até hoje.
Referências:
http://www.7letras.com.br/colecao-brasil-republicano/um-flamengo-grande-um-brasil-maior.html
http://www.literaturanaarquibancada.com/2011/10/hora-do-futebol.html
Leia também no blog do fla: Quando flamengo ganhou o mundial?