O apelido é tudo no futebol. Lá fora, os locutores enchem o papo para falar dos Reds, Spurs, Black Cats, The Fisherman, Pompey! No Brasil, desfilam os escretes do Colorado, Timbu, Raposa, Porco, Vozão, Macaca, Papão e Batoré das Dunas (epa, esse não é time, é um amigo nosso).
Mesmo o Botafogo, raros lembram, nasceu de um apelido. As terras do bairro passaram dos indígenas para Francisco Velho, que em 1590, mais velho ainda, vendeu-as para um certo João Pereira, vulgo Botafogo. Esse era o apelido em Portugal para os arcabuzeiros, fabricantes ou especialistas no manejo do arcabuz, arma de fogo então comum e já provavelmente desviada no exército para os morros cariocas.
Poucos apelidos, contudo, são mais recheados de reviravoltas, dúvidas, polêmicas do que o bom e velho Urubu, que hoje é mascote (todo musculoso) do nosso Clube de Regatas do Flamengo. Mas como diacho o urubu, ave feia e lúgubre, que remete ao Velho Oeste desolado nos filmes, se reinventou e virou urubu-rei na Gávea?
Muita pena – de outras aves – já foi gasta para contar essa história. A saga começou com um craque argentino, Lorenzo Miguel Ramón Molas. O desenhista foi contratado pelo “Jornal dos Sports” nos anos 1940 e, pouco antes do Tri de Valido, rabiscou o Popeye com o Manto Sagrado, inspirado nas tradições flamengas no remo e nas conquistas nos gramados marcadas por arrancadas improváveis, quando o time, após apanhar no começo das temporadas, parecia comer espinafre. Nas páginas rosadas do jornal de Mario Filho, o América virou o Diabo, o Botafogo um Pato Donald irritadiço, o Vasco ganhou o Almirante como símbolo e o Tricolor ficou com um Cartola.
A moda pegou de tal forma que Molas foi chamado a criar mascotes para os clubes argentinos também – um “Milionário” foi desenhado como personagem do River Plate, outro “Diabo” ficou com o Independiente e o Boca, que coisa, ganhou como personagem um pizzaiolo rechonchudo – Molas previu, portanto, que Boca e Napoli eram times irmãos uns dez anos antes de Maradona nascer, veja você.
Em 1947, outros mascotes vieram à baila (falei como os antigos, hein?). Por conta de uma série de desenhos de Otelo Caçador, a torcida de São Januário abraçou o Corvo, bichinho que aparecia no ombro do almirante da caravela, e estava dando sorte ao Vasco na temporada. Ary Barroso logo embarcou na onda e comentou, no mesmo jornal, que enquanto o corvo trazia sorte ao Vasco, um urubu, ave conhecida pelo mau agouro, parecia ter pousado na sorte dos flamengos.
Era o pontapé para os rivais encarnarem nos rubro-negros, doravante os “urubus”, como hoje somos os “mulambos” ou coisa que o valha – e só criança de 6 anos se incomoda, vamos e venhamos.
Notória torcedora cruzmaltina, Aida de Almeida garante ter testemunhado o primeiro urro ofensivo na arquibancada contra os flamengos, nos anos 1950. A líder de torcida lembrou a história ao pesquisador Bernardo Buarque de Hollanda, na frase resgatada no livro “O mau humor de chuteiras”:
“Quem deu o apelido de urubu aos flamenguistas foi o Tião, dono de uma fábrica de caixas de papelão e que inventava os cantos da Torcida Uniformizada do Vasco, desde os anos 1940. Houve um clássico noturno no Maracanã e a gente gritava com raiva, pois eles haviam roubado nosso espaço nas tribunas: ‘Ô, cachorrada!’ Do meio do alvoroço, Tião decretou: ‘Cachorrada, não. A partir de agora, eles vão ser urubus!’”
Foi quando outro cartunista, ainda mais popular que Molas, entrou em campo. Em 1967, o atleticano e flamengo Henfil foi contratado para desenhar no “Jornal dos Sports” mineiro, na coluna “Dois toques”. Provavelmente ligado nos brados do Maracanã, que talvez já ecoassem no Mineirão, Henfil desenhou seus três primeiros mascotes. Pro Galo Mineiro, um Urubu, bicudo e branco. Para o Cruzeiro, o “Refrigerado”, inspirado no apelido do goleirão cabeludo e galã Raul. E, para o América mineiro, o Gato Pingado.
O irmão de Betinho deu sua versão para os três bichos: “Eu queria relacionar o futebol à realidade social, jogar com o perfil dos torcedores. Primeiro chamei a torcida do Atlético de urubu, porque tinha muito preto. Representava a massa, o excluído. (…) Os cruzeirenses não gostavam nem um pouquinho de serem chamados de refrigerados. Parecia coisa de veado… Eu desejava, na verdade, marcar a torcida do Cruzeiro como representante da burguesia mineira. Ficou assim: a elite cruzeirense contra a massa atleticana”, diz o cartunista em sua biografia, “O rebelde do traço”.
Até hoje há a dúvida: o atleticano era chamado de urubu por causa de Henfil ou Henfil criou o urubu porque o cruzeirense já chamava o atleticano assim? Seja como for, as tirinhas explodiram, e logo o “Jornal dos Sports” do Rio, já sem o saudoso Mario Filho, pagou uma bolada pelo craque Henfil. Seriam criados então, em 3 de abril de 1969, o Urubu, agora preto, e o Bacalhau. Logo depois, viriam o Cri-Cri, o Pó de Arroz e, de novo, o Gato Pingado para outro América. O “JS” nunca vendeu tanto nas bancas.
O Urubu malandro de Henfil caiu nas graças da torcida, mas o lado de lá das arquibancadas ainda usava a ave como ofensa. Poucos lembravam, por sinal, de que o urubu foi a ave que inspirou Santos Dumont a projetar seus aviões. E, bastava o Mengo perder, e lá vinha músicas ao estilo de “É ou não é / Piada de salão / Um time de urubu / Querer ser campeão”.
Isso durou até 1º de junho de 1969. Dois meses após o sucesso de Henfil nos jornais, a patota do Leme formada pelos flamengos Luís Otávio Vaz, Romílson Meirelles, Victor Ellery e Erick Soledade teve uma ideia. Partiram para o lixão do Caju, no sábado, para capturar o bichão que mudaria a história. O voo do urubu diante do Botafogo, que não perdia para o Flamengo havia quatro anos, foi quase tão celebrado quanto os gols decisivos de Arílson e do estreante Doval.
“O urubu foi para o estádio num carro DKW, enrolado numa bandeira, bicando todo mundo”, contaria Vaz para Roberto Assaf. “Ele dormiu na portaria do meu prédio. No domingo, fomos cedo para o Maracanã e entramos com o bicho dentro do bandeirão gritando ‘Mengo! Mengo! Mengo!’, sem qualquer problema”.
Com uma bandeira de um metro atada ao corpinho negro, o uruba tomou uns goles de mate antes de ser solto, na hora em que os jogadores subiam do vestiário. Meio esbaforido com o estádio superlotado o mascote bambeou, mas terminou dando um belo rasante. Os 150 mil presentes não entenderam nada, até que pela primeira vez a Nação cantou em coro: “É urubu, é urubu, é urubu!”
A repercussão foi tamanha que a justiça se meteu e vetou a ave no estádio, que passou a ter revista na porta anti-urubus e outros bichos. Uma farra.
Hoje, as canções em tributo à ave são muitas, entre as quais a mais célebre, criada por algum clássico compositor barroco:
Corra!
Paspalho!
Vai tomar caju.
Quem manda nessa zorra é a torcida do Urubu…
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